Quando começamos o projeto de tradução de O Livro dos Espíritos em chinês, o desafio inicial foi definir o vocabulário específico que ainda não existia na língua de Confúcio, a começar pela palavra Espiritismo.
A dificuldade na tradução de determinadas expressões em chinês pode ser inferida, por exemplo, da controvérsia que envolve a tradução da palavra Deus. Versões protestantes da Bíblia traduzem Deus como Shangdi (上帝, O Grande Imperador nas Alturas) ou Shen ( 神, O Espírito, ou A Divindade), enquanto as traduções católicas normalmente optam por Tianzhu (天主, O Senhor dos Céus).
Outro exemplo interessante é o livro Ação Humana, do economista austríaco Ludwig von Mises. Há três versões do livro em chinês, sendo que cada uma delas traduz um título tão simples de forma diferente: 人类行为 (rénlèi xíngwéi), 人的行动 rénde xíngdòng, e 人的行为 (rénde xíngwéi)!
A maioria das pessoas não precisa se preocupar com questões de tradução. Elas podem ter tentado ocasionalmente ajudar algum turista que não conseguia se comunicar em uma loja, ou que talvez estivesse pedindo informações, mas, em geral, a idéia que a maior parte das pessoas tem de das questões de tradução é de que se trata basicamente de se encontrar em uma língua estrangeira a palavra correspondente a uma determinada coisa em sua língua materna, mais ou menos da seguinte forma.
Suponhamos que eu esteja com fome e queira ir a um mercado para comprar a fruta que em minha língua é chamada de maçã. Como eu não estou no meu país de origem, eu preciso procurar a palavra que representa a fruta na língua falada no lugar que eu estou visitando. Se eu estou na Espanha, a palavra correspondente é manzana; se eu estou na França, seria pomme; na China, píngguǒ (苹果). Se a palavra que eu estou tentando traduzir é neve, eu simplesmente uso nieve em espanhol, neige em francês, ou xué (雪) em chinês. Desta forma, o modelo mental básico que muitas pessoas têm sobre o processo de tradução é que basta estabelecer o mapeamento de um-para-um das palavras correspondentes em diferentes idiomas, como representado na ilustração abaixo:
Num primeiro momento, mesmo as idéias abstratas podem parecer conformar-se a este modelo simples. Digamos que, em vez de uma, eu quero comprar de fato três maçãs. O processo deve ser, então, muito semelhante. Tudo que eu precisaria fazer seria procurar o termo correspondente para a palavra três (a palavra usada em minha língua-fonte) na língua falada no lugar que eu estou visitando (que é chamada de língua-alvo).
Essa idéia básica sobre tradução não é incorreta se aplicada a exemplos muito simples e limitados a conceitos compartilhados entre a maioria dos idiomas. Não é preciso ir muito muito longe, no entanto, para percebermos as deficiências deste modelo. Cada linguagem evolui de acordo com uma série de fatores determinantes. Um fator chave é a maior ou menor necessidade que os falantes de uma língua têm de esmiuçar certos elementos de seu ambiente.
Tipicamente, quando um determinado conceito é muito relevante aos falantes de uma língua, é comum que termos muito específicos surjam para descrever as nuances sutis desse conceito com mais precisão. Muitos já devem ter ouvido falar sobre as muitas maneiras que o povo esquimó tem de descrever os diversos tipos de neve. “O dialeto Inuit falado na região Nunavik do Canadá tem pelo menos 53 maneiras de se referir à palavra neve, incluindo matsaaruti, para a neve molhada que pode ser usada nas lâminas de um trenó, e pukak, para a neve fina e cristalina que se parece com sal.” Deve ser extremamente difícil traduzir uma história Inuit que fale sobre o tempo!
Mesmo o conceito da quantidade não desenvolve a mesma maneira em todas as línguas. Algumas línguas indígenas do continente americano só têm o conceito de um, dois e muitos, sendo que algumas têm um conceito ainda mais restrito de menor quantidade e maior quantidade, como a tribo Pirahã na floresta amazônica. Para eles, um punhado de cinco frutas é descrito como oggi quando comparado com um punhado de dez frutas, mas será chamado hói, quando comparado com um conjunto de duas frutas apenas. Eles aparentemente não fazem a abstração do conceito de quantidade em suas vidas. Tal fenômeno não seria possível se o escambo existisse, ainda que minimamente: comerciantes devem manter o controle de seus estoques e preços, uma tarefa impossível sem um sistema de contagem minimamente desenvolvido.
Toda esta discussão preliminar é para exemplificar por que não se deve esperar que exista sempre uma correspondência direta entre palavras em idiomas diferentes.
Além das necessidades específicas a que as línguas devem atender, como descrito acima, outro fator importante é como elas se posicionam com relação às outras dentro de um determinado ramo linguístico.
Os idiomas que estão próximos uns dos outros em uma mesma família linguística normalmente exibirão com mais freqüência o tipo de mapeamento um-para-um descrito acima. Tomemos por exemplo o caso de línguas neolatinas, como o espanhol, o português e o francês, assim chamadas porque evoluíram todas a partir do latim vulgar.
Analisemos algumas palavras que são centrais para a nossa tarefa: espírito e alma.
Em latim, essas palavras são, respectivamente, spīritus e anima. Ambas significam respiração ou brisa e, por extensão, vida, alma ou mente (tudo o que respira está vivo, ou animado por um espírito ou alma).
Sem surpresas, encontrar termos completamente equivalentes nessas três línguas é simples: espíritus/alma em espanhol, espírito/alma em Português, e esprit/âme em francês. A associação de palavras aqui é tanto semântica (no sentido em que elas guardam essencialmente o mesmo significado), bem como etimológica (já que provêm da mesma raiz). Estamos agora prontos para derivar o nome da escola de pensamento estruturada por Allan Kardec. Se ele cunhou a palavra Spiritisme em francês, é fácil definir Espiritismo como a expressão equivalente em espanhol e português. Podemos também inferir a tradução do título do primeiro livro espírita de Kardec — Le livre des Esprits — sem qualquer dificuldade: El Libro des los Espíritus e O livro dos Espíritos, em espanhol e português, respectivamente.
Se formos um passo adiante e compararmos as palavras latinas spīritus e anima com seus equivalentes ingleses, é evidente que existe uma ligação direta no caso da palavra spirit, mas não no caso da palavra soul, que vem do antigo alto alemão sēula. Naturalmente, esta é também a origem da palavra equivalente em alemão, Seele. Neste ponto, já reunimos os elementos necessários para perceber que o Spiritism é, evidentemente, uma boa tradução da palavra original francesa Spiritisme, e que o título Le livre des Esprits deve ser traduzido com The Spirits’ Book em inglês.
No entanto, se o inglês e o alemão compartilham o par de cognatos soul/seele, o mesmo não ocorre com a palavra espírito, que em alemão é representado pela palavra Geist. Coincidentemente, Geist é também como é traduzida em alemão a palavra inglesa ghost (fantasma), já que Geist e ghost são derivadas do alto alemão geist. Os sinônimos derivados do latim phantom/Phantom também existem em inglês e alemão, mas são menos freqüentemente usados. A distinção sutil a ser feita aqui, porém, é que, embora ghost e phantom tenham basicamente uma sobreposição de significados completa em inglês, a interseção não é total em alemão, já que Geist também pode se referir ao conceito de espírito, enquanto Phantom se refere quase exclusivamente para o conceito de fantasma.
De qualquer forma, temos ainda um problema a resolver em alemão. O título O Livro dos Espíritos provavelmente deva ser traduzido como Das Buch der Geister (significando ao mesmo tempo O Livro dos Espíritos e O Livro dos Fantasmas), mas como vamos traduzir a palavra Espiritismo — deveríamos dizer “Geistismus” então?
Acontece que o alemão preserva o uso de morfemas latinos na formação de palavras. Por exemplo, apesar de normalmente traduzir-se a palavra racional como vernünftig, a palavra racionalismo em alemão preserva o uso da mesma raiz latina: Rationalismus. Da mesma forma, a palavra oportunidade é traduzida como Gelegenheit, mas oportunismo se traduz Opportunismus. Assim, não há problemas em usarmos Spiritismus para nos referirmos à doutrina espírita em alemão.
Vejamos agora como nossos mapas semânticos ficaram complicados:
As linhas roxas indicam uma correspondência semântica e etimológica simultânea. As linhas azuis indicam apenas correspondência semântica. As linhas vermelhas indicam correspondência semântica apenas parcial (com ou sem vínculo etimológico), e as linhas verdes indicam influência puramente etimológica.
Torna-se evidente que a correspondência semântica e etimológica simultânea que existe quando apenas línguas neolatinas são consideradas rapidamente se desfaz quando línguas de outras ramos são incorporadas à análise. E mais ainda quando se considera uma língua de uma família completamente distinta, tal como o chinês.
Em chinês vemos algo semelhante ao que acontece em alemão. A palavra mais comumente usada para designar espírito em chinês, 精神 (jīngshén), também significa mente, consciência, ou psique. A palavra psiquiatria, por exemplo, é traduzida como 精神病学 (jīngshénbìngxué), ou, literalmente, a ciência das patologias da mente. O conceito de espiritual, no entanto, pode ser derivado da palavra espiritualismo, 唯灵论 (wéilínglùn), que significa doutrina das questões espirituais, ou doutrina das questões do espírito. O morfema 灵 (líng), portanto, tem o significado central que estamos procurando, o de espírito. Ele também aparece na palavra Soul, 灵魂 (línghún). A sutil distinção entre as palavras alma e espírito pode ser confirmada pelo fato de que o conceito de alma está ligado ao significado original da palavra latina anima. A palavra animismo, por exemplo, é traduzida como 灵魂论 (línghúnlùn). A presença do morfema 灵 (líng) em ambas as palavras espiritualismo e alma é uma forte indicação de que deva estar presente em nossa escolha para a tradução da palavra espiritismo. Este é também o caracter usado para a tradução da palavra espírito nas versões em japonês existentes de O Livro dos Espíritos, fornecendo uma confirmação adicional de sua adequação.
Embora pudéssemos ter considerado o uso do morfema 灵 (líng) por si só, isso iria contra a forte tendência no chinês moderno de usar palavras dissílabas.
Resolvemos a questão usando a palavra 灵性 (língxìng), que é uma outra maneira de se traduzir a palavra espírito em chinês, sendo usada precisamente com esta acepção em várias obras clássicas. A palavra também está intimamente associada com os conceitos de espiritualidade e inteligência, algo que também ocorre com a palavra espírito e traduções correspondentes na maioria das línguas ocidentais.
Desta forma, o trabalho inaugural da codificação Kardequiana pode então ser traduzido como 灵性之书 (língxìngzhīshū), ou O Livro dos Espíritos. Finalmente, incorporando o sufixo 主义 (zhǔyì), equivalente ao sufixo “ismo”, chegamos à palavra 灵性主义 (língxìngzhǔyì), significando Espiritismo, ou a Doutrina dos Espíritos.